Centro Universo
Centro Universo
O centro do universo localiza-se em um apartamento de trinta e seis metros quadrados. A partir desse ponto desdobra-se a maior cidade da América Latina, o estado mais rico do país, uma das nações com maior nível de desigualdade social e diversidade cultural, um continente colonizado por europeus há pouco mais de quinhentos anos, oceanos poluídos e outros continentes de um planeta conturbado que, até onde se sabe, é o único que sustenta vida humana. Além da atmosfera terrestre há muito mais: planetas, estrelas, galáxias e uma imensidão vazia, mas isso não me interessa. Por hora.
Descobri nos últimos anos que a região central de São Paulo, lugar que escolhi para viver, comporta, em um espaço limitado, tudo o que pode haver. Todos os amigos de infância e os traficantes que pensaram em me matar. As fotografias de guerra de Robert Capa. Cenas que inspiraram pinturas sacras renascentistas. Naturezas mortas, mortas mesmo. Os lugares que Caravaggio frequenta. Alguns dos desenhos rupestres mais antigos deste século. Os quartos onde moram os modelos de Lucien Freud. Mapplethorpe acena da outra calçada. Todos os quadros e todas as fotografias foram feitos aqui.
Mas ainda há muito para ver. Os objetos que brilham na luz e os esconderijos das sombras – às cores pedi gentilmente que se retirassem. Mensagens cifradas em hieróglifos e pedras de Rosetta. Cachorros vadios e outros seres que se movem sobre o asfalto. Odores das profundezas junto com o cheiro de café. Qualquer comida que mate a fome ou sacie o apetite. Todo desejo e todo ato sexual. A arquitetura feita de concreto e lona, papelão e pedra, madeira e cobertor Reizinho. Formas de vida que respiram fuligem, brotam sobre qualquer solo e bebem água com diesel. O amor que atravessa as ruas de mãos dadas. Não falta nada nem ninguém. A ‘Comédia Humana’ transplantada para o terceiro milênio. E apenas a fotografia nos dá acesso a tudo isso.
Fotografo todos os dias e fotografar exige de mim presença integral. Realizo um extenso inventário de seres humanos. Trabalho meus retratos como um gênero literário. Registro todos os acontecimentos do mundo exterior e interior. Mapeio cada recanto do universo onde estive ou possa estar. Recolho e coleciono cada vestígio de civilização e barbárie. Posso sair do centro, mas nunca o deixo. Ao fim de cada dia tenho mais fotografias. Imagens em guerra com o fluxo desenfreado de esquecimento e diluição.
Este livro é composto por minha ambição e minha angústia. Reflete em detalhe minha fotografia: um gesto visceral necessário que se confunde com a existência. Uma mistura de fotografia documental, imaginação e drama. Documento o que muitos fingem ser invisível. Retrato o universo a partir de uma geografia particular e única. Quero ocupar todos os espaços de visibilidade e convocar as testemunhas deste tempo a voltarem a enxergar.